Nações Unidas, 20/5/2014 – A Organização das Nações Unidas (ONU), que tenta resolver a escassez hídrica no mundo em desenvolvimento, enfrenta um novo problema: a privação de água como arma de guerra em zonas de conflito. Os últimos casos estão na África e no Oriente Médio: Botswana, Egito, Iraque e Israel, que corta o serviço para os territórios palestinos que ocupa.

O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, expressou sua preocupação na semana passada, após denúncias de que grupos armados cortaram o fornecimento de água à assediada cidade síria de Alepo e deixaram 2,5 milhões de pessoas sem água potável nem saneamento durante oito dias. “Deixar as pessoas sem água potável é violação de um direito humano fundamental”, lertou Ban. “Pôr a população civil como alvo e negar-lhe fornecimentos essenciais é uma clara violação dos direitos humanos e do direito humanitário internacional”, acrescentou.

Nos três anos que dura a guerra civil na Síria, todas as partes em conflito, inclusive o governo do presidente Bashar al Assad e o leque de grupos rebeldes que tentam derrubá-lo, dificultam o acesso à água como arma de guerra. O conflito sírio já deixou 150 mil mortos e quase nove milhões de refugiados.

As violações do direito humanitário internacional incluem torturas e privação de alimentos e água.

Maude Barlow, representante do Conselho de Canadenses e da organização Food and Water Watch, disse à IPS que cada vez se usa mais os cortes deliberados de água como estratégia bélica. Durante o confronto entre Irã e Iraque, na década de 1980, as Marismas da Mesopotâmia foram drenadas. O então presidente iraquiano, Saddam Hussein (1937-2006) continuou secando-as durante as represálias dos anos 1990 contra os xiitas que se escondiam nessa região e contra os árabes das marismas que os protegiam, acrescentou.

No Egito, a privação da água e seu desvio para a população rica foi um dos principais fatores da Primavera Árabe, ressaltou Barlow, assessora para temas de água do presidente da Assembleia Geral da ONU entre 2008 e 2009. Milhares de pessoas ficaram sem água potável e os “protestos pela sede” foram um dos catalisadores do levante.

Mais de quatro décadas de ocupação israelense nos territórios palestinos tornam impossível construir ou manter a rede de água potável em Gaza, o que, por sua vez, contamina as fontes de água potável e causa a morte de muitas pessoas, destacou a especialista. Barlow também citou o caso de Botswana, que usou a água como arma de guerra contra os bosquímanos para obrigá-los a abandonar o deserto do Kalahari, onde foram encontrados diamantes. Em 2002, o governo proibiu os bosquímanos de terem acesso à sua única fonte de água, uma ação terrível que foi anulada anos depois por um tribunal de apelações, detalhou.

Anand Grover e Catarina de Albuquerque, dois especialistas em água e saneamento da ONU, disseram na semana passada que a falta de fornecimento hídrico, mesmo em contextos bélicos, é totalmente inaceitável. A cidade síria de Alepo teve um serviço intermitente desde maio de 2014, e um corte total no dia 10 deste mês que deixou muitas pessoas, possivelmente um milhão, sem água nem saneamento, afirmaram os dois especialistas. O problema afetou famílias, mas também hospitais e centros de saúde, ressaltaram.

Os cortes obedecem a uma interferência deliberada, mas as acusações mútuas dos grupos rebeldes armados e do governo sírio dão a entender que as duas partes tiveram responsabilidade em graus diferentes em momentos distintos. Barlow afirmou que a participação do governo de Assad nos cortes do serviço é coerente com seus antecedentes de usar a água para castigar seus inimigos e favorecer os amigos.

Em 2000, o regime sírio desregulamentou a posse da terra e cedeu vastos territórios e água aos seus aliados, endinheirados, o que reduziu as reservas e deslocou quase um milhão de pequenos agricultores e pastores de suas terras, recordou Barlow. O irônico e trágico é que as pessoas se assentaram em Alepo, onde novamente sofrem escassez de água, acrescentou.

nilo ch ONU deplora uso da água como arma de guerraO rio Nilo, no Egito. Neste país a privatização da água e seu desvio para a população rica foi um dos principais fatores da Primavera Árabe. Foto: Khaled Moussa al-Omrani/IPS

Barlow também se referiu ao problema quando se usa a água na “guerra de classes”. Na cidade norte-americana de Detroit, no Estado de Michigan, foi cortado o serviço de água de vários milhares de pessoas que não podiam pagar sua conta. E não faz muito tempo o mesmo ocorreu na Bulgária, Espanha e Grécia, devido às medidas de austeridade adotadas nesses países europeus. “O uso da água como arma de guerra é um argumento sólido para que os governos e a ONU tornem realidade o direito humano à água e ao saneamento, sem importar que haja outros conflitos”, insistiu.

Desde 1990, quase dois bilhões de pessoas tiveram acesso à infraestrutura de saneamento e 2,3 bilhões têm água potável graças a fontes melhoradas, segundo informe da ONU divulgado na semana passada. Este documento, elaborado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), diz que dessa população cerca de 1,6 bilhão de pessoas agora têm água encanada em suas casas.

Segundo o informe, mais da metade da população mundial vive em cidades, e as áreas urbanas continuam tendo um fornecimento melhor de água e saneamento do que as rurais. “Mas a brecha diminui”, afirma o documento. Em 1990, mais de 76% dos moradores das cidades tinham saneamento, mas eram somente 28% entre os das áreas rurais. Em 2012, a proporção passou para 80% contra 47%, respectivamente. “Apesar dos avanços, ainda há desigualdades geográficas, socioculturais e econômicas no acesso à água potável e ao saneamento no mundo”, alerta o informe da ONU. Envolverde/IPS

Inter Press Service – Reportagens – por Thalif Deen
20/5/2014 – 11h58

FONTE: REVISTA ENVOLVERDE 20.05.2014

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